A vida é assim. Você passeia por entre à tarde reluzente e reencontra tanto mistério, você pede informações e recebe epopéias, você consome a tarde e a tarde lhe devora, você pede privacidade aos passos, a tarde permanece retilínea e oferece suas flores, seus rostos, sua memória...
Na tarde todos pedem passagem. Corpos se desprendendo de suas formas naturais, risos só de escárnio. À tarde me pede, assim como clama por nós...
Na mesma tarde que me leva ao seu encontro se desenha o meu naufrágio de não saber o que sentir diante da mesma rua, do mesmo nome, da mesma vontade de arrancar de dentro da tarde a barra serena da madrugada.
Mas você continua fabulista, tanto quanto na juventude, ou melhor, um pouco adormecida pela inércia de tantas viagens no quarto. Quem lhe ver hoje jamais julgaria sua doce vontade de mar, um mar que só se realiza no quarto, no seu interior.
Enquanto as ondas permanecem em sua rebentação, você pede atalhos à inércia, sua inércia pega o telefone, olha a janela, seleciona palavras. Encontra-se perdida, mas só para erguer novos caminhos. Anos se esconderam num porão antigo e foram dados como perdidos, até esquecidos. Diante do miradouro das palavras não ditas o tempo me atravessa, devagar, com sua lança impiedosa. Ele se revela nos traços mais banais: um quadro de Klimt, um aroma de jasmim, uma calma na voz.
“É mais coerente o esquecimento” digo a mim mesmo. O tempo não me deu a dádiva de perceber o que não foi só meu e seu, o tempo me lançou abrupto em sua sala e foi me invadindo devagar, e fui deixando, longamente, que este sentimento me contaminasse.
Também o silencio, ele sempre foi nossa maior intimidade, um silencio só de Chet Baker.
São longas cartas nosso encontro, são vibrações da madrugada plenas de poesia. São fabulas entrecortadas como retalhos. Mosaicos encomendados pelo cemitério.
Você sorriu longamente. Depois de mais um gole de café, seus dentes escureceram com a borra, seu sorriso iluminou-se pela tarde. Então te convidei para os livros, ansiava divagar pela biblioteca, o lugar que mais foi meu. Seu consentimento foi imediato, acompanhado de certa alegria tímida. “Gostaria que lesses”, você me sorriu. ”Sobretudo Dante”, que a paixão implora.
Você permanece insone, vira-se com o olhar furtivo e prevalecem os olhos fixos, os mesmos que confabulam com as palavras, os mesmos que por entre o silencio e doses de café, me dizem: “O tempo é um velho guarda chuva que esquecemos num café. Mas as coisas reaparecem, e um dia ou outro acabamos por reencontrar nas mãos o guarda chuva de nossas vidas, abandonados aqui e ali...”.
E de novo, entre risos e Chopin, me deixo naufragar pelas pétalas que caíram e nunca chegaram ao chão, são nepentes guardadas no cheiro, no cosmos deste espaço.
O que fazer diante do arrebatamento? Sei que seriamos felizes, não fosse nossa humanidade, nossa vontade desvendar os próprios erros. Como pude esquecer por um momento, se o amor é só pétalas e memória?
Uma semente engravidara à tarde. Uma semente me leva - já amadurecida, pelos vales da memória. Ela me conduz a uma tarde, um lugar pleno de significados, o meu ser todo em flash back, como num filme de Kar – Way.
A mesma rua infecta, a mesma praça remota. O mesmo riso aberto. Eu simplesmente fecho os olhos, enquanto tudo me vem novamente: “À tarde te convida”, acenei com as mãos em direção ao parque. Um sorriso franco e alvo se derramando num gesto. Você simplesmente aceitou. Nunca imaginei que naquele gesto minha vida fosse conduzida a uma nova pátria, todo um país de sua imaginação. Naquele gesto tênue de me afogar se via o espelho de toda a felicidade do mundo.
Éramos jovens naquela tarde. Tínhamos apenas livros e algum trocado. Éramos talvez semi-deuses.
Mas não ouso dizer...
Os objetos da casa são os mesmos, eles apenas denunciam sua aversão pela mudança, despedidas, a tudo que não seja constante. Um quadro é só um quadro, tantas vezes visto, tantas vezes folheado, mais porque me dói tanto?
Gostaria de confessar-te, mas seria doloroso.
Prefiro os passos largos da praça, com meu rosto mirando o infinito. Prefiro o aprendizado das garças e do vento. São mais fies os sapatos q a vida.
Então faz-se a despedida, faz-se por si só. Exerce-se a façanha do encontro por entre à tarde, tantas vezes perdida. Faz-se dentro de mim o inominável movimento das velas roubadas, uma vontade nobre de chorar de derramar o que não foi vivido.
Não ouso olhar para traz. Não quero perturbar a ordem das coisas...
À tarde de minha memória esta orvalhada, com um gosto de gravura antiga.
A musica chegara clara e leve como o vôo de garça. Vi-me então num palco sem publico, recolhendo os objetos que ficaram da ultima sessão, com os olhos cheios de água. Uma canção buscava a leveza das garças. Vi-me repleto de algo que não havia vivido completamente, onde os carros freqüentes simbolizavam a grande limitação da vida.
Em meio ao verde parque as folhas amarelas se precipitam - As folhas amarelas são as alianças da terra – que só se revelam quando de suas entranhas ascende mágica da paixão. As folhas amarelas confidenciam seus anéis escondidos, os mesmos que por vezes se mostram em minhas unhas, que são alianças que nunca deixam de crescer.
À tarde me leva docemente, por suas ruas já sem luz. Chove em minha tarde, uma chuva só de memória. Mas é hora de partir.
André de Aviz